Depois de quase morrer em um incêndio, descobri o propósito da minha vida

Como Clarice Lispector, escrevo para salvar a minha própria vida

Em dezembro de 2021, alguns dias antes do meu aniversário, tive um sonho que até hoje estou tentando interpretar.

No sonho, eu estava na sala do apartamento de uma famosa escritora. Ela estava cercada de admiradoras e de amigas da infância, de um marido apaixonado e de dois filhos encantadores. Senti inveja da sua juventude, da sua beleza, do seu sucesso e da sua vida aparentemente perfeita.

No entanto, logo percebi que seu olhar era triste e assustado, como o de uma menininha traumatizada e desamparada.

A escritora me perguntou: “Mirian, o que eu preciso fazer para encontrar o propósito da minha vida”?

Respondi: “Tem que zerar para encontrar o que você realmente quer”.

Fim do sonho. Acordei.

Depois de muito tempo tentando decifrar o enigma do meu sonho, percebi que o sofrimento da escritora não estava na falta de significado da sua vida, mas no excesso de coisas que ela fazia para tentar preencher seu vazio existencial.

Excesso de atividades, de responsabilidades, de obrigações e de compromissos desagradáveis.

Excesso de críticas, exigências, expectativas, insatisfações, frustrações, comparações, cobranças, competições, preocupações, angústias e ansiedades.

Excesso de noites de insônia, de sofrimentos, medos, inseguranças e vergonhas.

Excesso de vampiros emocionais, de parasitas, de sanguessugas, de golpistas e de pessoas tóxicas dentro da própria casa, família e trabalho.

Excesso de sacrifícios para tentar ser 100% perfeita e não cometer erros.

Ela se sentia à mercê dos desejos dos outros e prisioneira da tentativa desesperada de ser amada e reconhecida por todos.

“Tem que zerar para encontrar o que você realmente quer”, dizia meu sonho.

Tem que zerar, chegar ao fundo do poço, mergulhar nas profundezas mais sombrias e assustadoras, para conseguir descobrir o que realmente é importante para você.

Em novembro de 2023, o prédio em que eu moro pegou fogo. Eu e meu marido quase morremos intoxicados e fomos os últimos moradores a ser resgatados. Quando o bombeiro nos encontrou no telhado, disse que eu poderia entrar no meu apartamento para pegar o que precisasse. “Mas tem que ser muito rápido porque o prédio precisa ser evacuado”.

Em menos de um minuto, o tempo que fiquei no apartamento, peguei uma bolsa e coloquei nela um caderno de 360 folhas, as canetas gel que uso para escrever, meu óculos de grau e meu celular. Mais nada!

Quantas vezes já tentei responder a uma pergunta hipotética: “O que você salvaria se sua casa estivesse pegando fogo?”

No dia em que quase morri intoxicada, em um momento de desespero e de pânico, eu descobri o significado do meu sonho. Não salvei dinheiro, joias, documentos, bens materiais. Salvei meu caderno e minhas canetas.

Escrever sempre foi, e sempre será, o propósito da minha vida. Como Clarice Lispector, escrevo para salvar a minha própria vida.

Afinal, “tem que zerar para encontrar o que você realmente quer”.

 

Antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de “A invenção de uma bela velhice”

 

 

 

Mirian Goldenberg Antropóloga e pesquisadora sobre envelhecimento e felicidade - miriangoldenberg@uol.com.br

 

 

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