Como aprender a escrever com razão e sensibilidade
Comecei a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1994, alguns meses depois de defender minha tese de doutorado. Logo no início, uma aluna brilhante do Mestrado me escolheu como sua orientadora.
Foi uma experiência maravilhosa e, após dois anos, quando só faltava escrever o capítulo de conclusão, marcamos a data da defesa da dissertação. Assim que confirmamos a banca, ela comprou uma passagem para Berlim para o mesmo dia da defesa, pois iria morar com o namorado na Alemanha.
Só que ela não sabia que estava grávida. E que a gravidez seria muito complicada e ela iria parar no hospital várias vezes. Ela ficou desesperada com a situação e eu também.
Quando ela se sentia um pouco melhor, vinha trabalhar na minha sala na universidade, pois ela não tinha computador no quarto onde morava. Eu a deixava trabalhando o dia inteiro e, quando ela não conseguia fazer mais nada, conversávamos sobre o que ela havia conseguido escrever.
Mas a conclusão não andava. Todos os capítulos estavam prontos, mas ela não conseguia terminar a dissertação.
Ela sentia uma saudade desesperadora do pai do seu filho, que trabalhava na Alemanha e não podia largar tudo naquele momento. Ela começou a pensar em desistir de defender a dissertação para poder ficar com ele.
Foi então que tive uma pequena epifania.
Como ela não tinha dinheiro, raramente falava por telefone com o namorado. Mas, todos os dias, escrevia longas cartas para ele.
Pensei: “Ela não consegue escrever a conclusão da dissertação, mas escreve longas cartas para o namorado. Por que não transformar a conclusão da dissertação em uma carta para ele?”.
Conversei com ela e perguntei se o namorado sabia o que ela estava escrevendo. Ela disse que sim e que ele gostava muito de conversar sobre a sua pesquisa.
Aí falei: “Hoje, você não vai trabalhar na dissertação. Você vai escrever uma carta para o seu namorado. Você vai contar a ele, detalhadamente, tudo o que você fez na sua pesquisa. Comece contando porque você escolheu esse tema, porque se apaixonou por essa pesquisa, em que momento decidiu dedicar dois anos da sua vida à sua dissertação.
Depois, conte tudo o que você sabia sobre o tema antes da pesquisa e o que você descobriu que não sabia durante a pesquisa.
Em seguida, conte todos os descaminhos e frustrações que teve, como você estava indo por um caminho e teve que desistir para seguir outro.
Conte também detalhes que pareciam insignificantes no início, mas que acabaram se tornando essenciais na história.
Conte o momento em que você decidiu terminar a dissertação e tudo o que você acha que ficou faltando, o que você gostaria de ter escrito e não conseguiu. Conte o que de melhor e o que de pior aconteceu no período de pesquisa.
Por fim, conte o que mergulhar na sua pesquisa mudou a sua vida, quem você era e quem você se tornou depois de descobrir e escrever tudo o que você pesquisou”.
Três horas depois ela me entregou a carta que escreveu à mão: 12 páginas que me fizeram chorar de emoção. Ela só precisou cortar o primeiro parágrafo que escreveu:
“Meu amor, estou morrendo de saudade. Como não estou conseguindo fazer nada além de pensar na nossa filha e em você, quero te contar sobre a minha pesquisa”.
Ela também cortou o último parágrafo: “Meu amor, você compreendeu a importância da minha pesquisa? Ficou emocionado ou achou chato? Espero que você tenha conseguido sentir toda a minha paixão por essa história. Eu te amo e não suporto mais ficar só um minuto longe de você. Em breve, estaremos juntos para sempre”.
Depois de cortar o primeiro e o último parágrafo, minha orientanda simplesmente digitou a carta e incluiu na dissertação como conclusão. Ela defendeu a dissertação na data marcada e foi muito elogiada pela banca, especialmente pela beleza, profundidade e síntese da conclusão. Os dois professores da banca disseram que ficaram extremamente emocionados e que chegaram a chorar ao ler o que ela escreveu. Parafraseando Fernando Pessoa, um deles disse que minha aluna provou que nem todas as cartas de amor são ridículas.
Lembrei-me desse fato quando estava buscando o tema da minha coluna para a Folha. Pensei: “E se eu escrevesse uma carta para a minha primeira orientanda e contasse que aprendi com ela a transformar os obstáculos em trampolim?”.
Vocês perceberam que só precisei cortar o primeiro e o último parágrafo para escrever o meu texto de hoje?
![]() Mirian Goldenberg
Antropóloga e pesquisadora sobre envelhecimento e felicidade -
miriangoldenberg@uol.com.br
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